Avanços: A carne de laboratório, próxima etapa será a gordura

Avanços: A carne de laboratório, próxima etapa será a gordura

 

 

 

BIFE DE PROVETA: Mark Post criou seu hambúrguer a partir de células-tronco retiradas de vacas; o custo de produção de cada um é R$750 mil

No último dia 5 de agosto, Londres presenciou uma cena inusitada. Dezenas de repórteres e cientistas se aglomeraram num estúdio chique de TV para ver três pessoas comerem um hambúrguer. Afinal, não era um hambúrguer qualquer. Aquele pedaço de carne de 140 gramas foi fruto de cinco anos de pesquisa do cientista holandês Mark Post, levou mais de oito semanas para ficar pronto e custou cerca de R$ 750 mil. Post literalmente o cultivou em seu laboratório, a partir de células-tronco de uma vaca que originaram 20 mil tiras de tecido muscular. Em suma, era o primeiro hambúrguer de laboratório da história. “O mundo está chegando ao limite”, afirmou. “E temos a solução para o problema”, disse ele, que tem planos de comercializar a carne em 10 a 20 anos.

 

"O primeiro hambúrguer bovino feito artificialmente pretende ser a chave para uma alimentação mais sustentável. Só que ficou meio sem gosto
por Felipe Pontes*, de Londres"


Professor de fisiologia na Universidade de Maastricht, a 200 quilômetros de Amsterdã, na Holanda, Post se referia ao crescimento mundial na demanda por carne e os impactos ambientais da criação de animais para abate. Segundo relatório publicado em 2011 pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), a demanda pela carne, impulsionada pela ascensão da classe média em regiões como a África, China e Brasil, subirá 73% até 2050. Ao mesmo tempo, a criação de animais para alimentação humana já é responsável pela emissão de 18% dos gases de efeito estufa no mundo, utiliza 27% da água que consumimos e ocupa 33% das terras aráveis do planeta, segundo dados compilados por Hanna Tuomisto, pesquisadora finlandesa do Instituto para o Ambiente e Sustentabilidade, situado em Ispra, na Itália. “A carne cultivada tem potencial de sobra para reduzir substancialmente o impacto ambiental em comparação à tradicional”, afirma Hanna, que estava presente no evento em Londres. “Sem contar que não leva antibióticos por não precisar de animais que contraem doenças.”

Uma questão bem mais complexa é a futura aceitação da carne de laboratório. “Não é natural. Ninguém sairá comendo-a tão facilmente”, diz Fernando Sampaio, diretor-executivo da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec). Ciente da resistência pública iminente, Post afirma que planeja tornar seu hambúrguer idêntico em aparência e gosto com o feito de carne de abate. “Minha ideia é levá-lo aos consumidores o mais rápido possível”, disse Post (leia a entrevista na página ao lado). Na terça, 6, numa conversa com a reportagem na praça Finsbury, na capital britânica, o cientista afirmou que produziu apenas três hambúrgueres desde que começou sua pesquisa, em 2008. Todos levaram três meses para ficarem prontos. O primeiro foi para Post e sua equipe em Maastricht testarem seu sabor e textura. Outro foi cozinhado às vésperas do evento para a produção de fotos de divulgação e o último foi preparado e comido no próprio dia da apresentação.

FALTOU TEMPERO
O hambúrguer, capaz de enganar muitos olhos desavisados, teve a aparência elogiada pelos dois provadores independentes, o escritor americano Josh Schonwald, autor de The Taste of Tomorrow (O sabor do amanhã, em tradução livre, publicado em 2012 nos EUA) e a cientista austríaca Hanni Rützler, especializada em nutrição. Mas o sabor deixou a desejar. “Ele parecia familiar, tinha a cor, a textura e o cheiro parecido com um hambúrguer comum”, disse Schonwald. “Mas achei o gosto muito neutro. Talvez porque eu seja americano, e não consiga viver sem catchup e jalapeños”, afirmou. Hanni o achou “suculento”.

Post, que repartiu metade do hambúrguer com Schonwald e Hanni (a outra metade foi separada para seus filhos, uma garota de 14 anos e um garoto de 13, e a equipe de produção), afirmou saber que ainda precisa aprimorar muito o sabor, principalmente a gordura, considerada a principal culpada pela falta de gosto. “Ela definitivamente será a próxima coisa que eu vou fazer”, disse. O cientista declarou que será possível replicar cortes complexos, assim como reproduzir a carne de qualquer animal, dentro de 20 anos.

A tecnologia, apesar de impressionante, ainda tem muito a evoluir. “Nós estamos longe de ver este hambúrguer ser produzido em grande escala e ter um impacto genuíno na mudança climática global”, disse Neil Stephens, cientista social da Universidade de Cardiff que estuda a criação artificial de carne. “Tudo é uma questão de dinheiro. Quanto mais caixa entrar, mais rápido o hambúrguer chegará às prateleiras”, afirmou Stephens, que também acompanhou a apresentação.

Financiamento certamente não faltou para Post. No dia do evento, foi revelado que Sergey Brin, o bilionário fundador do Google, era o investidor misterioso que apoiou a empreitada (o nome por trás do trabalho de Post era mantido em sigilo até então). Em um vídeo divulgado durante a apresentação, ele disse que o apoiou principalmente por ser contra a crueldade animal. Segundo Cornelia van der Weele, professora de filosofia humanista da Universidade Wageningen, na Holanda, preocupações morais como a de Brin impulsionarão a aceitação pública da carne de laboratório. “Até organizações de vegetarianos estão apoiando a iniciativa”, disse Cornelia, que também estava no evento.

Post tem como objetivo deixar seu hambúrguer milionário custar o mesmo que um hambúrguer comum algum dia. “Imagine alguém em dúvida entre um produto com um selo escrito ‘ecologicamente correto’ e outro, com um adesivo estampando que um animal sofreu para fazer aquilo chegar lá”, afirmou. “Eu não tenho dúvidas sobre qual será escolhido.” Cornelia imagina um futuro no qual a carne de laboratório será consumida no dia a dia, enquanto a natural será utilizada em datas especiais e feriados. “Desde que os animais sejam felizes, é claro.”

Editora Globo

*Felipe é repórter de Época
 



 

A GORDURA É O PRÓXIMO PASSO

O criador do hambúrguer diz que já está pesquisando maneiras de deixar a carne mais saborosa e atraente

* Quando o senhor teve a ideia de produzir carne artificial?
A ideia, na verdade, é velha. Winston Churchill apresentou as possibilidades de fazer algo do tipo num livro de 1932. Na Holanda, um homem chamado Willem van Eelen pensa nisso há uns 25 anos. Em 2008, ele organizou um grupo de cientistas, do qual fiz parte, para fazer isso acontecer. Mas o financiamento acabou e eu fui o único cientista que persistiu e conseguiu receber financiamento para tocar o projeto.

* Quanto tempo levará para melhorar o sabor?
É difícil dizer. Nós queremos fazer um produto para consumidores, então queremos chegar lá o mais rápido possível. Talvez os problemas e desafios aguardados sejam mais fáceis de superar que o previsto. Mas, sendo bem cauteloso, eu acho que levará 10 anos. Pode ser menos, mas não acontecerá amanhã ou ano que vem.

* Qual é o próximo passo da sua pesquisa?
A gordura definitivamente será a próxima coisa que iremos fazer. Na verdade, já estamos fazendo. Nós também podemos dar às fibras musculares uma cor natural para que não precisemos do açafrão e do suco de beterraba. Sem esquecer que o hambúrguer também precisa ganhar escala, então é outro problema em que estamos trabalhando. Nós queremos transformá-lo num produto para o consumidor o mais rápido possível.

* Como o senhor planeja colorir o tecido?
Nós queremos usar mioglobina, uma proteína que as células expressam. Elas fazem isso sozinhas. Nossos músculos são vermelhos, por exemplo, porque possuem mioglobina. Não porque o sangue corre por eles. Nós podemos estimular o conteúdo de mioglobina nas células musculares ao cultivá-las num ambiente com pouco oxigênio. E nós fizemos isso. Mas não conseguimos repetir o procedimento na escala atual de produção do hambúrguer, porque eu tenho somente uma pequena incubadora que controla oxigênio. As outras são normais.

* O senhor já está preparando uma versão nova do hambúrguer?
Meu laboratório está trabalhando em melhorias numa escala menor. Atualmente, estamos focados mais na ciência que na produção.

* Sergey Brin pode lhe dar mais dinheiro?
Sim. Mas isso ainda não foi decidido. Nós ainda não assinamos um contrato, então não há nada definitivo a respeito.

* Há outro investidor além dele?
Neste momento, não. Se bem que há uma questão técnica. Tecnicamente, a Universidade de Maastricht também é patrocinadora da pesquisa, porque eu sou pago por ela. E estou trabalhando nisso. Meu salário não vem do senhor Brin. Vem do cidadão holandês que paga impostos, assim como o prédio onde eu trabalho.

* No futuro, o senhor planeja tornar-se um empresário ou algo do tipo?
Não é muito provável. Eu sou feliz sendo um professor universitário, e provavelmente continuarei sendo um. Não posso excluir a possibilidade completamente, mas negócios não são muito a minha praia.