Infinita busca pela energia infinita

Infinita busca pela energia infinita

A física diz que é impossível, mas inventores ainda não desistiram de criar o moto-contínuo: um sistema que produz energia perpétua por meio do próprio movimento. Conheça a saga desses excêntricos projetos

por Alexandre Rodrigues | Ilustração Mediainvia

 

Editora Globo

A solução para os problemas de energia do mundo pode estar na cidade de Imperatriz, no Maranhão. É lá que o empresário Nilson Barbosa e o ex-técnico de eletricidade Cleriston Leal garantem ter criado algo que a humanidade busca há milênios: um moto-contínuo. Quando estiver pronto, dizem os criadores, o sistema será capaz de gerar a própria energia. O nome do projeto revela o tamanho da ambição: Energia Universal.

Caso funcione, será mesmo revolucionário. A partir dele celulares, notebooks, carros e quaisquer aparelhos poderão funcionar sem precisar recarregar. Terão alimentação sem fim. “Pegamos um motor, uma roda e um gerador”, diz Nilson, um dos criadores, também conhecido como Nilson Ampére. “Com esse equipamento e mais um nobreak, resolvemos o problema.” Autodidata, confessa não entender muito de física. “Eu e meu sócio estudamos só até o segundo grau. Meu aprendizado foi no ramo.” Mesmo sem conhecimento teórico, ele se mostra confiante. Teme que espiões roubem sua ideia. Até hoje, o invento foi exibido apenas uma vez, em 2012, numa demonstração pública na cidade. Está, afirma o criador, em fase final.

Funcione ou não, a dupla brasileira não está sozinha. Encontrar a fonte de energia eterna é um dos capítulos mais peculiares — e fracassados até agora — da história da ciência. Para os estudiosos, o moto-contínuo seria impossível, já que violaria pelo menos uma das duas primeiras leis da termodinâmica, bases da física moderna.

A primeira lei diz que energia não pode ser criada, apenas transformada. “Não existe almoço grátis na natureza. A energia precisa ter uma origem. Não vem do nada”, diz o professor Fernando Lang, do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “A segunda lei é mais complicada”, explica Jeferson Arenzon, também professor da universidade. “É uma lei negativa. Pode-se pegar uma certa quantidade de energia e transformar 100% em calor. O que não pode é pegar esse calor e retransformar em energia sem haver perda.”

Em outras palavras, um moto-contínuo não funciona porque sempre haverá alguma perda de energia na forma de calor quando o mecanismo está funcionando. A lei formula que é impossível vedar o sistema para protegê-lo dessa transformação da energia. Mesmo nos mecanismos mais eficientes que existem, não se chega perto de 100% de aproveitamento. “Nos motores de automóvel, por exemplo, se aproveita no máximo 80% da energia que está no petróleo”, diz Lang.
 

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EM PROCESSO: Em Porto Alegre, a empresa de biodiesel RAR Energia diz construir um moto-contínuo capaz de captar e aproveitar energia da gravidade. Deve estar pronto em 2014. As visitas não são permitidas

Na Idade Média, essas leis eram desconhecidas e muito por isso foi quando mais se buscou o moto-contínuo. Ainda que existam referências à busca pelo invento na Grécia antiga e no manuscrito em sânscrito “SiddhantaCiromani”, de 1.500 anos atrás, o primeiro aparelho moderno foi ideia do filósofo e matemático indiano BhaskaraAkaria (1114-1185), conhecido dos estudantes por sua fórmula para as equações de segundo grau. Ele esboçou, no século 12, uma roda com vários recipientes cheios de mercúrio, que se deslocariam para deixar um dos lados mais pesado e, assim, provocar o movimento perpétuo. Foi o primeiro quase moto-contínuo.

O fracasso não impediu, no século seguinte, o francês Villard de Honnecourt, considerado o Leonardo da Vinci de sua época, de usar a ideia para outra roda, com o acréscimo de braços articulados e martelos nas pontas. Depois dele, uma série de inventores surgiu com novas ideias para o mesmo objetivo. Não há registro de que alguma tenha funcionado. Até o próprio da Vinci (1452-1519) teria se interessado pelo assunto. O italiano deixou esboços de três tipos de rodas com rolamentos. Anos mais tarde, engenheiros tentaram colocá-los em ação. Não vingaram.

Outros ilustres a tentar foram Edward Somerset, o marquês de Worcester (1601-1667), mais um adepto da roda, e o filósofo italiano MarcantonioZimara (1460–1532), que imaginou um moinho preso a um fole que criaria o próprio vento. A lista também inclui o químico Robert Boyle (1627-1691), criador de um engenhoso garrafão-funil que até funciona em algumas condições — com bebidas gaseificadas.

Todos eles formam um grupo trágico, afirma o escritor americano Arthur Ord-Hume, autor de Perpetual Motion – theHistoryofanObsession (Moto-contínuo – a história de uma obsessão). “Diz-se que um enlouqueceu, outros cometeram suicídio e muitos sofreram mudanças de personalidade como resultado de seus sonhos não realizados.” Foi o caso do alemão Johan Bassler (1680-1745), que garantia ter construído uma roda que funcionava eternamente — mas só podia ser vista por trás de uma tela. Quando o filósofo holandês Guilherme Gravesande viu o truque, Bassler ficou tão transtornado que a destruiu. A obsessão arruinou sua vida.

Ao lado deles, a busca inclui uma legião de anônimos, inventores de final de semana e, não podiam faltar, malucos de todo tipo. Tantos que o Escritório de Patentes dos Estados Unidos recusa pedidos de registro de moto-contínuo. A Real Academia de Ciências de Paris faz o mesmo há 230 anos, desde antes da Revolução Francesa.

Raros são espertalhões feito o americano John Kelley (1837-1898), que enganou investidores por décadas com as demonstrações de seus aparelhos que, segundo ele, funcionavam com “energia etérea”. Quase sempre é gente simplória como o armênio GarabedGiragossian, que um século atrás empolgou os Estados Unidos prometendo energia grátis. Seu único argumento — de que era um homem honesto e não podia mostrar sua ideia por medo de que a roubassem — convenceu a imprensa e o Congresso americano a pressionarem o governo a dar uma olhada na ideia. Quando uma comissão de cientistas foi examinar o protótipo, foi comprovado que não passava de um pêndulo gigante.

Físicos tendem a achar esses excêntricos inventores como desperdício intelectual. “Essas pessoas são extremamente engenhosas e inteligentes”, diz Jeferson, da UFRGS. “A pena que eu sinto é que, se tivessem recebido uma educação formal em física ou química, poderiam estar trazendo benefícios para a humanidade em vez de ficarem buscando a pedra filosofal.”

Mesmo com descrédito acadêmico e histórico desfavorável, hoje não faltam inventores com promessas iguais. Na Irlanda, a empresa Steom garante que seu moto-contínuo, batizado de Orbo e composto por magnetos e discos de plástico presos a um eixo de metal, tira da gravidade da Terra três vezes mais energia do que gasta. Uma comissão de cientistas examinou o aparelho e negou que funcione como a empresa diz. No Canadá, o cientista de fim de semana ThaneHeins diz também ter criado um, que chama de Parepiteia. Composto por duas bobinas e uma série de ímãs dispostos em forma de círculo, um fenômeno magnético faria girar a roda e aceleraria um motor perpétuo. Ele apresentou, em 2008, o projeto a professores do Massachusetts Instituteof Technology (MIT). Não impressionou.

No Brasil,o maior projeto pertence à empresa de biodiesel RAR Energia, de Porto Alegre. Ela publicou, em abril, anúncios nos jornais afirmando que constrói um moto-contínuo para “captar e aproveitar a energia contida na gravidade do planeta, a qualquer momento e lugar, sem qualquer poluição ou calor”. A sobra de energia seria aproveitada em um movimento “mecânico, contínuo e eterno”. Pela descrição, é um sistema de pesos, pistões e manivelas. A expectativa é que o projeto seja terminado em 2014.

É o mesmo prazo dado por Nilson, o inventor do Maranhão. Ele já vende até uma espécie de pré-moto-contínuo, o Captor de Elétrons. Ligado na eletricidade, o aparelho retira, segundo o inventor, prótons e elétrons do campo magnético da Terra e produz 300 vezes mais energia do que consome. “Com uma carga de 21 watts, produzimos 6 mil watts”, afirma.Na única exibição, em Imperatriz, manteve acesa uma lâmpada elétrica, mas nenhum cientista examinou o aparelho até agora. O preço de venda é R$ 11 mil.

Entre tanta excentricidade, a questão que fica é: e se um desses moto-contínuos funcionar? “Para começar, teríamos que reescrever os livros de física”, diz Jeferson. “Não teria mais problema de energia e, por consequência, de fome.” O criador, afirmam estudiosos, se tornaria o homem mais rico do mundo. Com tanto dinheiro e glória em jogo, é certo que os inventores não vão parar de tentar. Ainda que os chamem de loucos.
 


 

FAMOSOS POR FALHAR

Quem foram os principais cientistas a tentar criar o moto-contínuo
 

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O pioneiro
COMO É: Surgida no século 12, é uma roda dentada com recipientes cheios de mercúrio nas pontas, criada pelo indiano Bhaskara. Ao se mover para a ponta de cada recipiente, o mercúrio faria a roda sempre ter um lado mais pesado, deslocando o eixo e garantindo o movimento perpétuo. A ideia também aparece em alguns manuscritos de antigos inventores árabes.
POR QUE DEU ERRADO: Quando o peso se desloca para um lado, diminui a velocidade da roda. Não há força para fazer o líquido voltar ao alto pela primeira vez. Em vez de criar um movimento contínuo, na prática, é um freio.
 

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Até tu, da Vinci?
COMO É: Leonardo da Vinci deixou esquemas de três rodas, todas usando rolamentos que deviam correr para a parte de baixo e para a ponta quando há movimento. A energia seria criada com o deslocamento.
POR QUE DEU ERRADO: O aparelho, nuncaconstruído em sua época, jamais funcionou com os modelos modernos. A gravidade acaba equilibrando o jogorapidamente e o atrito neutraliza o movimento dos pesos.
 

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Moinho de vento eterno
COMO É: A ideia é criar um vento perpétuo. Quando um moinho se movesse com o vento, criaria energia para os braços que pressionam o fole, produzindo mais vento e fazendo a hélice girar novamente. O filósofo, astrólogo e alquimista MarcantonioZimara propôs o aparelho no século 16.
POR QUE DEU ERRADO: O próprio Zimara não sabia como fazer o moto-contínuo funcionar e deixou a outros a missão de construir a parte mecânica.
 

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O funil de Boyle
COMO É: Robert Boyle imaginou, no século 17, um recipiente com um funil ligado a um tubo que lança o líquido de volta ao alto. O recipiente ficaria cheio de novo e a gravidade faria o líquido descer mais uma vez pelo funil, voltando ao alto.
POR QUE DEU ERRADO: Deu em termos. O site MunchausenToday testou o aparelho com vários líquidos e descobriu queCoca-Cola e cerveja fazem o moto-contínuo funcionar enquanto não perde o gás. Como o líquido é mais denso do que a espuma, a pressão hidrostática causa o movimento. Resta inventar um refrigerante com propriedades eternas.
 

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Máquina moderna
COMO É: Um complicado sistema com rolamentos e, o melhor, uma cadeia de esponjas encharcadas e secas que, indo para cima e para baixo, moveriam as rodas. Tudo criação de William Congreve, político inglês e inventor, já no século 19, de um foguete militar, um processo de impressão a cores e um novo projeto do motor a vapor.
POR QUE DEU ERRADO: Precisa explicar?