O que é a ciência ortodoxa?

O que é a ciência ortodoxa?
"Parece-me que a chamada “ciência ortodoxa” inclui duas posições diferentes: a materialista e a positivista. A ela se opõe uma interpretação mística da ciência, que podemos chamar de “naturalismo animista”, e que tem tido um papel de destaque ao longo de toda história da ciência" Sou ateu, materialista, e cético em relação à parapsicologia. Tenho fé na ausência de Deus. Minha crença no materialismo é dogmática. Por isso, respeito outros dogmas, outras fés. Fui educado desta maneira. Lembro-me em cima de um rochedo com meu pai, olhando para o mar, e sentindo a dignidade de encarar a vida e a morte de acordo com as evidências da observação, sem mitos consoladores.

Conversando com colegas místicos, discutindo a metafísica quântica, não é lícito que eu tenha a pretensão de conhecer melhor a verdade do que eles. Tenho minha visão de mundo, baseada na ciência ortodoxa, e eles têm as deles, baseadas numa interpretação mística dos resultados da ciência. A única coisa que posso legitimamente fazer – dado que adoto uma postura dogmática com relação ao materialismo – é apontar para meus colegas quais são as posições da ciência ortodoxa, quais são as posições místicas “conciliadoras” com os resultados da ciência, e quais são as posições místicas “desafiadoras” da ciência
Cada um terá que decidir por si só qual é a verdade. Geralmente, a verdade é uma só. Por exemplo: adotando uma definição da palavra “Deus”, ou Deus existe (fora de nossas mentes) ou Deus não existe. Mas nunca poderemos comprovar uma dessas afirmações, de forma que a aceitação de uma delas terá que envolver uma dose de fé. Ou então, podemos adotar uma postura “agnóstica”: dado que nunca comprovaremos se Deus existe ou não, então é melhor suspendermos nosso juízo com relação a esta questão. Tal atitude, de evitar nos envolvermos em questões “metafísicas”, é típica da tradição do positivismo, que marcou a ciência durante muito tempo.

Com este último parágrafo, adiantei uma das respostas à questão que quero analisar no presente texto. E a questão é a seguinte: o que é a ciência ortodoxa? Quando afirmo que a ciência ortodoxa não aceita, por exemplo, os resultados dos experimentos de Masaru Emoto – que defende que a estrutura cristalina da água é afetada pelas emoções humanas –, a que visão de mundo estou me referindo?

Parece-me que a chamada “ciência ortodoxa” inclui duas posições diferentes: a materialista e a positivista. A ela se opõe uma interpretação mística da ciência, que podemos chamar de “naturalismo animista”, e que tem tido um papel de destaque ao longo de toda história da ciência, como explicarei mais abaixo. Todas são visões de mundo “naturalistas”.

Há basicamente três grandes pontos de partida para as visões sistemáticas de mundo.

(i) A abordagem mítica ou religiosa parte do sobrenatural, de Deus ou de diversos deuses com características humanas. (ii) A abordagem naturalista parte da Natureza, com suas leis e regularidades, e procura explicar tudo, inclusive o homem, a partir das ciências naturais. (iii) A abordagem humanista ou subjetivista assume que o homem é a medida de todas as coisas, ou então que o ponto de partida do conhecimento é o sujeito pensante, que é anterior à ciência. Esses pontos de vista não são necessariamente excludentes, mas ao longo da história podemos classificar boa parte dos sistemas filosóficos e visões de mundo dentro de uma dessas três classes.

O debate sobre misticismo e física quântica se dá basicamente dentro do naturalismo. Esta é uma atitude de valorização da nossa experiência e da natureza. Ela considera que a experiência se refere a um mundo que possui uma certa unidade e segue leis, e não sofre ingerências de almas antropomórficas. É uma posição que valoriza o conhecimento científico contemporâneo. Por exemplo, ao estudar uma questão filosófica, ela leva em conta os resultados da psicologia e da neurociência. Há pelo menos três grandes correntes dentro do naturalismo científico.

1) Materialismo

Esta é a tese de que tudo o que existe pode ser reduzido a entidades físicas, como matéria, energia, entropia, campos, etc. A alma humana seria fruto da matéria, de forma que, na morte do corpo, desapareceria também a nossa alma. Fora de nós, no mundo material, não haveria propósitos, intenções, vontades, racionalidade, mas apenas o comportamento espontâneo da matéria. A origem da vida é explicada como fruto do acaso e do mecanismo da seleção natural. Boa parte da ciência ortodoxa condiz com esta visão de mundo.

Quando um fisiologista submete um camundongo a um certo estresse, corta-lhe a cabeça e mede a concentração de um hormônio em seu cérebro, ele está atuando de forma condizente com o materialismo, buscando as raízes materiais do comportamento. O materialismo atual não consegue explicar como surge a subjetividade, a consciência, como surge a “vermelhidão” que percebemos ao olharmos para um morango vermelho. Mas o sucesso crescente da abordagem materialista dá esperanças, para o cientista ortodoxo que vê o mundo desta maneira, que um dia os problemas difíceis da subjetividade serão desvendados, talvez após a descoberta de novos princípios que regeriam a matéria.

Podem-se delinear seis grandes fases na história do materialismo: o atomismo da Antigüidade greco-romana, o materialismo indiano (Carvaka), em parte a filosofia mecânica cristã do séc. XVII (como em Hobbes), o iluminismo do século XVIII, a ascensão da fisiologia e do evolucionismo no séc. XIX, e o realismo “fisicalista” atual (que retoma, na década de 1960, o espaço perdido para o positivismo). Vale notar que boa parte da discussão na filosofia da mente atual pressupõe o fisicalismo (que é sinônimo de materialismo), sendo marcada por um debate entre o reducionismo e o “emergentismo”.

2) Positivismo

A abordagem precedente pode ser chamada de “realista”, pois ela tece afirmações sobre como se comporta a realidade não-observável. O positivista, por seu turno, considera que isso é apenas especulação metafísica, e não tem lugar na ciência. O positivista leva a sério apenas as observações, os “dados positivos” obtidos pelos instrumentos científicos. Há, é claro, lugar para teorização, mas esta seria apenas uma maneira de sistematizar o nosso conhecimento – não devemos presumir que nossas teorias espelhem a realidade que está para além de nossa observação. Dizer que a matéria é o fundamento da realidade, ou que a alma desaparece na morte, careceria de sentido. Perguntado sobre qual é a explicação para a experiência subjetiva da “vermelhidão”, por exemplo, o positivista responderia tipicamente que esta pergunta está mal formulada, pois usa a linguagem de maneira inapropriada. O positivismo teve seu período áureo na ciência mais ou menos entre 1870 e 1970, e ele foi muito forte nas interpretações ortodoxas da física quântica.

3) Naturalismo animista

Assim como o materialismo, esta visão busca os segredos da Natureza de maneira “realista”, mas – ao contrário dos materialistas, que consideram que esta realidade é inanimada – ela considera que a Natureza é dotada de uma espécie de alma, de uma “força” ou “energia” que a guia e dá sentido às nossas vidas. Historicamente, o naturalismo animista está associado ao nascimento da ciência, nas tradições do pitagorismo, estoicismo, taoísmo, hermetismo, astrologia e alquimia. No Renascimento, esta tradição teve bastante importância, sendo hoje conhecida como “naturalismo renascentista”. Um fenômeno como a atração magnética era visto como análogo à atração amorosa entre seres vivos (em francês, a palavra para imã, aimant, tem a mesma raiz que amour).

No século XIX, o naturalismo animista teve uma certa importância na ciência inglesa e alemã, estando associada ao movimento romântico. Na Alemanha, o filósofo Friedrich Schelling sistematizou esta abordagem, que veio a ser conhecida como Naturphilosophie (filosofia da natureza), influenciando a homeopatia, a antroposofia, etc. Na década de 1960, essa visão de mundo se fortaleceu novamente, com o movimento “nova era”, etc. Na ciência, no entanto, as posturas positivista e materialista continuaram dominando, e muitas das crenças científicas associadas a esta versão moderna do naturalismo animista são consideradas “pseudociência”, como a astrologia, a homeopatia e a parapsicologia.

Eis então um breve resumo de três grandes posturas nas ciências naturais. O que tenho chamado de “ciência ortodoxa”, e que talvez congregue em torno de 90% dos cientistas, parece se dividir principalmente nas atitudes materialista ou positivista. O misticismo quântico faria parte da terceira corrente científica, que chamei de “naturalismo animista” (por falta de um nome melhor), e que tem uma longa tradição na ciência, apesar de sua importância ter gradativamente diminuído ao longo dos séculos.

 

https://www2.uol.com.br/vyaestelar/fisicaquantica_ciencia_ortodoxa.htm